O capitalismo e a degradação da arte.
- Pedro Vidal
- 6 de jan. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de ago. de 2022

Pedro Vidal
Pedro é brasileiro, formado em relações internacionais e fotografía. Fotógrafo de profissão, coautor do projeto Levante.
A arte esta morrendo, assim como tudo neste planeta, e o culpado é um só: O capitalismo. As transformações socioeconômicas que se deram por conta desse modelo ocorreram de maneira extremamente acelerada nas últimas décadas. Muitos chamam de evolução, mas a que preço?

Quando olhamos para nós sobre o ritmo de vida que este modelo nos impôs, podemos dividir nossa vida em basicamente duas partes:
A primeira é a do trabalho, que temos que fazer para sobreviver e tirar nosso próprio sustento. A maioria de nós nem se quer se identifica com o próprio trabalho ou entende que contribui socialmente em sua comunidade através dele. Fazemos o que fazemos por necessidade e pela recompensa financeira. Não é o trabalho ideal mas me permite pagar as contas.
A segunda parte é a do tempo livre, a mais importante, pois é nela que fazemos o que queremos e cumprimos nossos desejos. É aqui que somos o que somos. É nessa parte também que consumimos, conteúdos e coisas materiais. Também é neste espaço-tempo que nos recompomos para a jornada do dia seguinte.
Para o capital o indivíduo também é feito de duas partes, a de força de trabalho e a de poder de compra. A de consumido e de consumidor. No nosso tempo livre somos todos consumidores e para o capital essa nossa necessidade de descanso, conforto, cultura, energia e entretenimento é vista como oportunidade de negócio.
A arte habita, em sua essência e em seu objeto final, a segunda categoria desses dois pontos de vista. Quanto ao indivíduo, a sua parte livre. Quando ele é o que é. E quanto ao capital a arte habita o momento em que o indivíduo é consumidor, é neste ponto que o capitalismo contamina a arte.
Em essência toda arte é e deve ser criada por si só, a razão de ser da arte é ela mesma, é a vida em si. A arte não serve a propósitos alheios, só respeita as próprias regras ou nenhuma regra. Como já dizia grande poeta brasileiro Paulo Leminski, a arte é um “inutensílio”, “A poesia (a arte) não tem que ter razão de ser.” Pra que porquê?”
A arte tem na sua natureza ser uma expressão espontânea e por consequência acaba sendo reflexo de nossos anseios pessoas, nossas, de nossos sentimentos. Por isso é uma ação politica, mesmo que não seja de protesto, pois é uma expressão identitária que condiciona nosso comportamento como sociedade.
É papel da arte educar, representar as expressões de seu povo, reivindicar, expor, informar e formar pensamento crítico. Questionar. Também é seu papel entreter, emocionar, convencer, e mais que tudo, fazer muito disso ao mesmo tempo. Por mais que haja mil maneiras de, frustradamente, tentar definir o que é, arte, é fácil dizer o que ela não é. Um produto.
O capitalismo subverte tudo a seu favor e a arte, ao ser um “inutensílio”, naturalmente não serve ao capital. Para ser valida, a arte (como oportuna) rompe com sua essência e visa a eficiência, sobretudo econômica. A razão de ser do objeto artístico não é sua capacidade de lucrar. Ao se transformar em produto, ao ser recondicionada as regras de mercado, a criação artística perde sua espontaneidade e sua identidade própria. A obra passa a servir os interesses do mercado, um interesse alheio, e não suas próprias convicções. No capitalismo não há arte por arte, nem entretenimento por entreter, nem educação para ensinar. Há arte, entretenimento e seja lá o que for, pelo lucro. Se não a lucro, não há nada.
Grande parte de nós alcança o tempo livre ao fim do dia, já exaustos, depois de uma longa e consumidora jornada de trabalho e sendo assim é compreensível que o desejo de uma pessoa comum seja de se entreter ou de se ocupar com algo relaxante. Por isso é mais conveniente para o mercado que se produza e reproduza na televisão um reality show que demande zero esforço intelectual do que algum conteúdo sobre ciência ou filosofia. Que se façam pinturas e artes plásticas que se adéquem a canecas e almofadas.
O capitalismo compete com a espontaneidade da arte se apropriando de sua forma ao mesmo tempo que corrompe seu conteúdo. Ocupando seu espaço com mediocridade e oferecendo algo fácil, pratico e anestesiante. Se vale do próprio desgaste que cria para te satisfazer com pouco.
O cinema é um grande exemplo dessa decadência. Os filmes de maior êxito da última década, e não digo só pelo fator econômico más também por engajamento social, são os filmes da franquia de super-heróis da Marvel. Dezenas de filmes, todos iguais, esteticamente pobres e impecáveis, com altíssima qualidade técnica, orçamentos estrondosos e uma campanha de marketing desigual. O resultado desse desprendimento de capital é um só, uma série de filmes medíocres que além de servir para vender brinquedo e parques temáticos é de fácil absorção e reforça nossa alienação.

Por trás de muita maquiagem de feitos extraordinários, pessoas superando seus limites e vencendo seus medos e obstáculos, a mensagem é uma só. Não antagonize. Não pense fora da caixa. Se mantenha em seu caminho que tudo dará certo, não questione, faça a coisa a certa. Está tudo bem como está.
Do primeiro ao último filme tudo o que você vê o Hulk, Capitão América, Homem de Ferro e seus amigos fazerem é responderem as tragédias, nunca ativos, sempre passivos. É um monstro que perturba a ordem? Pois o Iron Man acaba com ele, orgulhoso, como se tivesse tirado da miséria 10 milhões de pessoas.
Fiéis ao status quo. Estão lá sempre a postos esperando para responder com toda boa vontade a qualquer martírio que seja. Nunca questionam nada, nunca mudam de posição, sempre ali seguindo em frente. Nunca se impõem sobre o que já está posto, como se a condição humana se desse perfeita, que nem os mais poderosos seres mágicos ou extraterrestres podem tirar isto de nós.
Vendem a ideia do herói, aquele indivíduo especial que sozinho faz a diferença. O recado está dado: tudo está bem como está, e se algo acontecer, não se preocupe, o homem-aranha aparecerá para resolver seus problemas. Se por acaso você quiser ser o herói da sua história saiba que você, sozinho, pode tudo. E se não pode é por que não acreditou, não se esforçou o suficiente.
Essa fórmula se repete nas dezenas de filmes e séries que são fabricadas em uma velocidade incrível pelas (pouquíssimas) mais variadas plataformas de audiovisual como Netflix, Disney e Amazon Prime.
Mas o cinema não é a única expressão artística que se viu tragada pelos tentáculos do capitalismo. A música é outro setor que foi violentamente “gentrificado”. Fábricas de hits. Algorítimos que fazem música sem intervenção humana. Singles inteiros de duas palavras e duas notas. “Artistas” que crescem e desaparecem na mesma semana. Estas são as 5 musicas mais tocadas de 2020 por exemplo:
1. Blinding Lights - The Weeknd - 2. Don't Start Now - Dua Lipa - 3. Higher Love - Kygo and Whitney Houston - 4. Dance Monkey - Tones and I - 5. Adore You - Harry Styles
Nenhum desses artistas estavam na lista de 2019 e provavelmente quase nenhum deles estará na lista de 2021. Vão durar enquanto seu valor capital durar. O conteúdo já não importa, o que interessa para o mercado é que essa “música” pegue rápido, que o personagem do músico venda, que distraia as pessoas e que reforce o individualismo, o culto a celebridades e o valor das coisas materiais.
O mesmo se repete pelas outras artes. Na fotografia, por exemplo, toda uma legião de pessoas tomada pela mecânica das redes sociais que inventou uma ideia do artista vazia de obras. Pintores, escultores y fotógrafos, sem arte, sem fotografar, vivendo de presumir. Se esforçando para melhorar seu alcance, seu engajamento, sua visibilidade. Subetido a um emprego que não lhe pagam, de marketeiro de si próprio, prestando mais atenção no algorítimo que em sua obra. Determinando pelos likes como produzir. Achando que arte se aprecia pelo instagram. Centenas de reels e tiktoks com truques e dicas de como criar uma “obra de arte” incrível com dois simples passos, em 30 segundos.
Já não há mais disposição para se dedicar meses a um projeto, contar uma história. Estudar primeiro, pesquisar o assunto a ser retratado, criar relações, ir e voltar muitas vezes ao mesmo lugar, e assim encontrar o melhor ponto de vista sobre algo. Há um desespero. É preciso ficar famoso já e pra ontem.
No mundo da fotografia a consequência disso são as milhares de fotos de paisagens urbanas todas iguais e séries de retratos e autorretratos por todos os lados. Todas iguais, feitas em um par de horas. A indução de se consumir imagens e artistas tal qual consumimos produtos faz com que esses “fotógrafos se esforcem mais para parecerem artistas consagrados e com volume de trabalho do que em criar arte relevante.
Mas essa é uma tendência que chegou para ficar. Pelo menos até ser atropelada pela próxima. Não se pode culpar os “artistas” em questão, pois a maioria de nós entramos neste mundo com um desejo criativo legítimo, mas esta é a moda, é para onde o capital vai. Não há tempo nem disposição no capitalismo para criar algo nos moldes que levem em conta o valor da arte o valor de um projeto fotográfico. A dinâmica que impera agora exige que o artista crie conteúdo numa velocidade que não condiz com a necessária para se criar arte com substância. Não faz falta ir muito longe, numa realidade como essa, artistas como Basquiat, Sebastião Salgado, Georgia O’keeffe, Garcia Marques ou Pina Bausch, não teriam vez.
É verdade que segue havendo artistas que se mantém fiéis as suas convicções porém a força do capital somente apoia aquele quem as convicções sejam maleáveis ou coincidam com as do mercado e que criam “arte” em modelo de produto. O capital só apoia a arte que gera lucro e que reforce seu modelo de exploração. Os demais artistas seguem por aí abandonados, improvisando para sobreviver nessa estrutura inconveniente.
Outro argumento leviano que se usa pra perpetuar essa estrutura parasitária diz que a culpa desse desinteresse é de que a arte é chata e difícil de entender, principalmente para o cidadão comum. Que as pessoas não gostam de arte, que é coisa de gente “erudita”. Isso é um grande absurdo e em primeiro de tudo um pensamente preconceituoso e segregador. É um erro achar que a arte é algo superior, que ler, apreciar boa música, artes plásticas, museus, bom cinema e etc, é chato e difícil. Tudo vai ser chato e difícil enquanto toda sua energia vital estiver dedicada a enriquecer os outros. Só o fácil nos agrada pois não resta disposição para nada.
Tampouco é por questão de gostos pois seguramente, se nos fosse permitida essa liberdade, arte popular ou de nicho perpetuariam na sua mais pura forma e para todos os gostos, sem a premissa irredutível de ser um produto rentável. Só não somos todos “eruditos” ou “cultos”(no sentido puro da palavra, sem o preconceito atribuído a essas expressões) a nossa maneira por que não nos é concedida essa possibilidade, consequência da desigualdade social.
Não convém ao capital revelar o fato de que tua relação com o trabalho é abusiva, que sua indisposição para consumir arte é por conta desse esforço desequilibrado que esgotam todas nossas energias. A culpa não é do conteúdo que é demasiado complexo mas sim do fato que é mais conveniente para o capitalismo nos manter cansados, nos transformar em ignorantes pelo esgotamento e assim amortizar o dano que ele causa com entretenimento barato e alienante.
A necessidade de tornar a arte em produto de fácil consumo se faz perder no processo de criação o apreço pela linguagem artística.
Toda obra tem dentro de seu campo uma série de variáveis que ao longo do tempo vão se reafirmando ou se desfazendo, formando assim um corpo de argumentos para definir se uma obra de arte é boa ou ruim. Por exemplo: Na música há uma série de medidas melódicas e rítmicas e criativas. Na fotografia, regras de composição e narrativas. Na literatura, pintura, escultura e etc o mesmo, originalidade, criatividade, impacto, relevância, além do acervo histórico e seu conhecimento acumulado.
Estas formas e regras vão agregando mais valor e reafirmando o campo da arte como uma expressão hegemônica. A medida que vão se reafirmando ou se renovando, essas medidas vão transformando o campo artístico em questão em uma expressão mais sólida, com um valor intrínseco, com uma história própria.
No capitalismo esses elementos ficam em segundo plano, tomando a frente a ideia de alcance, rentabilidade, engajamento e outras referências mercadológicas e de marketing. A linguagem independente da arte se transforma em algo dispensável.
Como um vírus, com seu padrão de comportamento vicioso, o capitalismo não distingue seus hospedeiros. Corróe tudo da mesma forma. Reduz tudo ao lucro. Transforma toda sociedade em uma massa de enriquecer a poucos, cada vez mais poucos.
“Uma sociedade que considera ao homem unicamente como instrumento para enriquecer-se é anti-humana.” do livro A mãe de Maximo Gorki.
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